sábado, 6 de julho de 2013

GOSTEI DE A OUVIR TOCAR!

        Estórias DO ANTÓNIO


                                                                                 fOTO JAIME bAHIA

       - Como se chama, minha senhora?
            - Conheço-o?
            - Não, na realidade nunca nos vimos.
            - Eu digo o nome, mas vai perdoar-me o meu estranhar. Elvira.
            - Elvira só?
            - Estou só, mas pode acrescentar Adolfini. Mas...devo-lhe alguma coisa?
            - Que eu saiba, nada!
            - Então ...
            - Gostei de a ouvir tocar...
            - É algum agente? De que editora?
            - Eu...não...
            - Angaria artistas para espectáculos! É isso!
            - Gostava, mas nem sei como se faz isso, tenho pena...
            - Normalmente com uma oferta de almoço, ou lanche em casos piores, promessas de estrelas a caírem no regaço, contratos falsos e um quarto de hotel, barato se a oferta for aceite muito depressa. É assim que se faz.
             - É ácida! Toca muito bem mas é ácida!
             - Deve ser do "vinagre" que tenho bebido...anda cada vez mais falsificado mas não perde a acidez...
             - D.Elvira
             - Gandolfini!
             - D. Elvira Gandolfini, será. Toca acordeão há muito tempo?
             - Mais do que o suficiente, menos do que gostava antigamente.
             - É também confusa de entender, desculpe que lhe diga.
             - Às vezes em vez de vinagre, como sou uma velha ainda bonita (não sorria! Não concorda que ainda tenho uns traços antigos?) também, me oferecem vinho generoso.
             - Não entendo, perdoe!
             - O vinho não me azeda, faz-me confusa para as pessoas.
             - Ah...Hoje...hoje devem ter-lhe dado das duas coisas...
             - Estamos a entender-nos finalmente.
            - Posso voltar a perguntar se toca acordeão há muito tempo?
            - Desde que o piano ficou muito pesado para o trazer comigo.
            - Desconversa sempre?
            - Como é que sabe se ainda há pouco nem me conhecia  o nome?
            - D.Elvira, gostei de a ouvir tocar, as suas "Czardas" foram sublimes!
            - Vestígios, vestígios de salões e saraus.
            - Tocou neles?
            - Quando era mais nova, muito. Alguns eram meus.
            - Seus?
            - E tinham piano. A música era a minha verdade, sentia-a.
            - Onde é que poderei ouvi-la? Haverá algum piano por aqui perto?
            - Há, mas já não é meu. E os meus dedos já se recusam às teclas, anos sem lhes dar som, sabe, Sr.?...
            - Daniel. Os seus dedos ou a sua desistência?
            - A desistência primeiro.
            - E porque não voltou a tocar?
            - Voltei. Não me ouviu nas "Czardas"?
            - O acordeão também tem teclas como um piano, é isso que quer dizer?
            - Tem que ser. A alternativa bonita, dolorosa e de marca, está ali dentro da sala do restaurante, já não lhe chego, proibiram-mo, o pianista jurou ao dono que eu ia estragar o Steinway.
            - E ia?
            - Não teria coragem para isso, já foi meu antes de ter esta idade só de vestígios. Como a roupa e o             resto, até este cãozito que me acompanha.
            - O cão também??
            - O cão é mais recente, faz habilidades, é engraçado, entretém.
            - Na verdade...E se eu for falar com o dono do restaurante, acha que ele a deixaria tocar?
            - Não faça isso, a música é a verdade do meu espírito, não lhe conseguiria mentir, choraria e       nenhuma música verdadeira sairia de mim...
            - Está a mentir-me?
            - Só a ocultar-me. Sabe, o prédio onde está o restaurante era do meu marido. Quando morreu, as dívidas não foram com ele, só todo o resto. Ficou-me a dignidade e...a acidez.
            - Lamento.
            - Agora desculpe, há outra vez muita gente à nossa volta. Tenho que voltar a tocar. Importa-se de deixar uma nota ou moeda no chapéu na boca do cãozinho?



António Nunes de Almeida

06-07-2013

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