fOTO JAIME bAHIA
- Como se chama, minha senhora?
-
Conheço-o?
- Não,
na realidade nunca nos vimos.
- Eu
digo o nome, mas vai perdoar-me o meu estranhar. Elvira.
- Elvira
só?
- Estou
só, mas pode acrescentar Adolfini. Mas...devo-lhe alguma coisa?
- Que eu
saiba, nada!
- Então
...
- Gostei
de a ouvir tocar...
- É
algum agente? De que editora?
-
Eu...não...
-
Angaria artistas para espectáculos! É isso!
-
Gostava, mas nem sei como se faz isso, tenho pena...
-
Normalmente com uma oferta de almoço, ou lanche em casos piores, promessas de
estrelas a caírem no regaço, contratos falsos e um quarto de hotel, barato se a
oferta for aceite muito depressa. É assim que se faz.
- É ácida! Toca muito bem mas é ácida!
- Deve ser do "vinagre" que tenho bebido...anda cada vez
mais falsificado mas não perde a acidez...
- D.Elvira
- Gandolfini!
- D. Elvira Gandolfini, será. Toca acordeão há muito
tempo?
- Mais do que o suficiente, menos do que gostava
antigamente.
- É também confusa de entender, desculpe que lhe diga.
- Às vezes em vez de vinagre, como sou uma velha ainda
bonita (não sorria! Não concorda que ainda tenho uns traços antigos?) também,
me oferecem vinho generoso.
- Não entendo, perdoe!
- O vinho não me azeda, faz-me confusa para as pessoas.
- Ah...Hoje...hoje devem ter-lhe dado das duas coisas...
- Estamos a entender-nos finalmente.
- Posso voltar a perguntar se toca acordeão há muito
tempo?
- Desde que o piano ficou muito pesado para o trazer
comigo.
- Desconversa sempre?
- Como é que sabe se ainda há pouco nem me conhecia o nome?
- D.Elvira, gostei de a ouvir tocar, as suas
"Czardas" foram sublimes!
- Vestígios, vestígios de salões e saraus.
- Tocou neles?
- Quando era mais nova, muito. Alguns eram meus.
- Seus?
- E tinham piano. A música era a minha verdade, sentia-a.
- Onde é que poderei ouvi-la? Haverá algum piano por aqui
perto?
- Há, mas já não é meu. E os meus dedos já se recusam às
teclas, anos sem lhes dar som, sabe, Sr.?...
- Daniel. Os seus dedos ou a sua desistência?
- Daniel. Os seus dedos ou a sua desistência?
- A desistência primeiro.
- E porque não voltou a tocar?
- Voltei. Não me ouviu nas "Czardas"?
- O acordeão também tem teclas como um piano, é isso que quer dizer?
- Tem que ser. A alternativa bonita, dolorosa e de marca,
está ali dentro da sala do restaurante, já não lhe chego, proibiram-mo, o
pianista jurou ao dono que eu ia estragar o Steinway.
- E ia?
- Não teria coragem para isso, já foi meu antes de ter
esta idade só de vestígios. Como a roupa e o resto, até este cãozito que me
acompanha.
- O cão também??
- O cão é mais recente, faz habilidades, é engraçado,
entretém.
- Na verdade...E se eu for falar com o dono do
restaurante, acha que ele a deixaria tocar?
- Não faça isso, a música é a verdade do meu espírito,
não lhe conseguiria mentir, choraria e nenhuma música verdadeira sairia de
mim...
- Está a mentir-me?
- Só a ocultar-me. Sabe, o prédio onde está o restaurante
era do meu marido. Quando morreu, as dívidas não foram com ele, só todo o
resto. Ficou-me a dignidade e...a acidez.
- Lamento.
- Agora desculpe, há outra vez muita gente à nossa volta. Tenho que
voltar a tocar. Importa-se de deixar uma nota ou moeda no chapéu na boca do
cãozinho?
António Nunes de Almeida
06-07-2013
Está magnífica. Gostei imenso.
ResponderEliminar