quinta-feira, 18 de julho de 2013

RAIOS'O PARTAM!

                   
           
        


    - Raios’o partam!
            Ouvir uma imprecação destas na boca de uma senhora, pura e lavada por certo, onde nunca terá entrado nada mais impuro do que comida e escova de dentes, podendo até ser do tempo em que as senhoras ainda se chamavam Efigénia, tais expressões, ditas fortes, me parecem chocantes, mesmo tendo eventualmente uns anos menos do que a senhora Dona, talvez Efigénia, tento adivinhar.
            - Raios’o partam!  Raios’o partam!  Raios’o partam!
            Três vezes já implica estados mentais, não tenho dúvidas, mas tenho é receios sobre o estado da sanidade mental da idosa. Ficará bem ajudá-la?
            - Minha senhora, não sei o seu nome, mas vejo a sua irritação.
            - Sim? Vê-se assim tanto? É descuido meu, raios’o partam!
            - Se é descuido, não sei, parece-me mais irritação contra algum embusteiro que se aproveitou da sua, sei lá…, ingenuidade.
            - E o senhor acha-me com cara de ser ingénua? É por isso que me acode?
- Não a quis ofender, vi-a tão…danada, assim em voz alta só comigo ao perto!
- E que faz o senhor aqui ao perto?
- ….Como? Desculpe, que faço aqui ao perto? Ia a passar, espero que não seja pecado nenhum.
- Pecado? Mas passou aqui para me aborrecer a vida?
- Juro que não, por Deus lhe juro que não! Passei só!
- Falso beato! Obra do demo, entendo e acredito!
- Demo? Chamo-me Joaquim, de demos e mafarricos, sei pouco…
- Mas de pecados, danações e outras coisas do paraíso, disso parece saber bastante!
- Se me permite, e como já não me tem em grande conta, vou arriscar uns anos mais sem perdões celestiais – aliás sempre duvidosos – e dizer-lhe com clareza o que me custou ouvi-la a imprecar “Raios’o partam!”.
- Sou demasiado velha para mandar alguém partir-se com um raio?
- Não digo velha, assim velha sem mais adjetivos de suavização, também não. É idos…quero dizer, já foi mais nova, mas tem aquele ar das Efigénias…
- MAS QUEM LHE DISSE O MEU NOME?
Apesar de toda a minha deferência e respeito pela mulher de idade à minha frente, não me foi possível esconder um, ainda que abafado, “ porra que não é possível !". Um homem não está precavido contra adivinhas que caiem de trambolhão numa conversa imprevista! Cruzes canhoto, mas…
- Ouvi! Olhe que ouvi!
Não sou muito de missas, mas rezei para que a audição dela não tivesse captado o palavrão. Continua a ser feio dizer palavrões com plateia feminina.
- Ouviu?... Desculpe, não era intenção…
- Ouvi. Disse cruzes canhoto, prova de que está possuído pelo diabo! Se fosse mais novo punha-lhe pimenta na língua! Cruzes canhoto….ora querem lá ver?
Senti alívio, é minha mais arreigada crença de que o diabo não quer nada com este Joaquim, havendo tantos políticos com que se ocupar.
- E quer saber, homem incréu e perdido para todo o sempre, porque disse “Raios’o partam!”?
- Três vezes, madama, três vezes…
- Leu o Eça de Queiroz?
- Bem, alguma coisa…
- O Crime do Padre Amaro?
- Li o Basílio…tinha umas aventuras, digamos, atrevidas, com a prima…
- Era uma vergonha na minha idade. A senhora minha mãe proibiu-me de ler o livro!
- Lá tinha as suas razões, era pecaminoso o sexo, desculpe, o que se passava  nas camas deste e daquela. E com padres à mistura, piorava…
- Proibido ou não, li-o quatro vezes.
- Parabéns, deve ser uma leitora de truz!
- Sim, confio num bom autor, e tive um ótimo professor de literatura, o pároco da minha freguesia.
- O pároco, D. Efigénia??
- Sim, o pároco, padre de ideias avançadas e homem sabedor.
- Vejo que terá sido…pelo menos muito à frente para a idade e profissão, devia ser!
- Disse-me que a santidade e a pureza está em cada um de nós e que o paraíso é para quem o merece. E convenceu-me disso mesmo, que eu iria para o céu com ele a guiar-me nos caminhos do paraíso.
- E não a levou? Morreu sem a levar?
- Morreu há dias, o safado…só agora me telefonaram a dizer.
- Faltou ao prometido?
- Completamente! Sempre me jurou  que ficando virgem entraria no paraíso, mas nunca me disse que lá esperavam por mim dois ou três mil árabes para dormirem comigo! Raios’o partam!



António Nunes de Almeida

19-07-2013

Sem comentários:

Enviar um comentário