À viva força quiseram pôr-me a fazer tapetes de
Arraiolos, coisa de que francamente não gosto. Depois ensaiaram uma tentativa
de me convencerem a dançar. Entre os tapetes e a dança, a escolha era para mim
um trilema: de uma das partes, não gosto, da outra não quero por ser ridículo
dançar na minha idade, sendo que a terceira componente é o meu desejo
fortíssimo de os mandar todos para o diabo que os carregue.
Já entenderam seguramente que sou uma velha – agora
diz-se idosa, seja… - acabadinha de ficar viúva, muito embora este acabadinha tenha já dez meses. Ainda há
pouco a minha situação era bem diferente desta de me porem a fazer tapetes de
Arraiolos ou da China, de onde dizem que vêm excelentes tapetes desses,
legítimos, já se deixa ver. Entendo que na China também devem dançar, daí a
alternativa que me era oferecida.
Antes da altura do trilema, lá me ia entretendo com um
grande vaso de flores, daqueles largos, com uma capacidade de dez pés de rosas,
coisa mais do que suficiente como jardim do meu (ainda será?) terceiro andar
num bairro alegre de ruas vagamente limpas. É o que chamam de bairro típico,
para turista ver.
Ainda há pouco – a minha noção do tempo vai
sendo um pouco peculiar, aceitem, porque nesta idade o tempo que se faz é a
diminuição do tempo que falta para a morte, donde quanto mais tempo demorar o
tempo, melhor – uns senhores lá da Freguesia me vieram pedir para pendurar umas
roupas na janela porque havia festa na aldeia! Pendurei um par de ceroulas
velhas do meu defunto, um soutien meu e umas cuecas encarnadas que descobri nem
sei bem como e porquê existiam, e o êxito foi total! Nem demorou o tempo das
festas da aldeia antes que me viessem agradecer muito a colaboração, mas que já
podia tirar a roupinha do varandim.
Soube
mais tarde por uma amiga que vende jornais num quiosque, que a “passagem de
modelos” de roupa íntima (frase bonita…) fora fotografada para uma revista
cor-de-rosa, que é assim que chamam àquelas porcarias com os retratos de vadios
bem vestidos e vadias bem despidas. Fiquei, claro, muito satisfeita, com as
conversas que iam sair acerca das ceroulas do meu defunto penduradas no
estendal. Não sei se o meu ajuda peitos modelo recente de há dez anos, teve o
mesmo sucesso que a rouparia do meu Álvaro, e já é tarde para lhe perguntar.
Foi
um pouco mais ou menos depois desse desfile de roupa, que veio família acho que
dele ou minha, não me recordo muito bem até se os conhecia, falar comigo se eu
não estaria interessada em alugar ou vender a minha casinha de há tantos
felizes e até infelizes anos que ali vivemos, eu e o Álvaro.
Não,
não estava.
Desapareceram.
Mas
apareceram outra vez. Trouxeram um senhor que não me disse nada ao
reconhecimento, se calhar era um parente ainda mais afastado de um de nós dois,
e que falava baixinho e mansamente. Não lhe disse que estou cada vez mais
surda, o que me valeu a mim o sossego e a ele uma perda de tempo.
Desapareceram.
Mas
apareceram outra vez passado um tempito – desculpem em não vos dizer quanto…a
tal coisa do tempo que se quer a andar para trás por causa da tia de negro e
foice afiada – e apareceram outra vez, contava eu, com novas ideias velhas de
me porem a andar dali, porque estava sozinha, podia morrer sem ninguém dar por
isso, que eram três andares de escadas perigosas, que ficava melhor num bom
lar, conversas dessas.
Deixem-me
contar uma historieta engraçada. Certo dia, ainda o meu defunto era vivo, pedi
a uma sobrinha se podíamos ir passar um domingo numa caseca que ela tinha na
região saloia. Eu pagava o almoço, coisa simples, porque, diga-se, a reforma do
meu defunto quando ainda o não era, dava bem para vivermos e não queria pesar a
ninguém por isso pagava o almoço, credo! Pois a bonifácia achou tanta graça ao
nosso pedido, que se escangalhou a rir enquanto dizia que não podia ser, que
fôssemos para outro sítio qualquer.
A
minha memória já um qualquer coisa fraca, não me ajuda nem a saber para onde e
se fomos para algum lado, nem a perceber se a tipinha era umas das pessoas
fazendo parte da comitiva que aparecia e desaparecia e com a ideia velhaca de
me poupar três andares de pernas a troco de me ausentar definitivamente da
vizinhança do meu vaso de rosas.
E
querem saber? Numa das investidas, porque alguém mais sabedor de como se leva a
água ao moinho, mesmo que este não queira, lá descobriu a falta de decibéis nos
meus ouvidos, e apareceu-me (também desapareceu depois, descansem) com uma
coisa feia de se meter na orelha para ouvir melhor os avanços delas, deixa-se
perceber.
A
minha amiga do quiosque disse-me que o objecto era um daqueles que vinham num
anúncio de ouvidinhos baratos para os idosos da Misericórdia.
Que
riso me deu quando eles vieram outra vez e desataram a falar, a falar,
confiantes naquela coisa dos anúncios, sem saberem que nem com um altifalante
aquilo me punha a escutar melhor o canto das sereias, porque tinham-me dado uma
amostra e não um aparelho a sério!
Lá
tiverem que desaparecer (quantas vezes já apareceram e desapareceram nesta
história? Muitas? Poucas? Para mim vezes demais!) novamente comigo instalada ao
pé do varandim das ceroulas a falar com os pés de rosas!
Mas
era gente de não desistir. Um papel agitado na mão duma das caridosas bruxas,
trazia um selo esborratado, mas passava mesmo por um selo. Parece que fora
papel arranjado pelo senhor da Freguesia que nunca gostara de ver ceroulas à
janela à razão dos turistas.
Li
então – lá ler eu consigo porque há ainda dioptrias vagas na mesma cara onde
faltam os decibéis – que me iam internar por invalidez e por razões de
segurança. Qual, não constava!
Então
eu não sou segura? Subo e desço as escadas sem cair agarradinha ao corrimão e
sou insegura? O vasinho de flores, o meu jardim do 3ª andar – está bem, pode
cair na rua, mas vou agarrá-lo melhor com um arame – é que é pior do que as
telhas do prédio em frente - que dizem ser de um senhor importante - e que de
tão velho e podre volta e meia larga umas tantas delas? Ou dos buracos que a
rua tem que nem se vêem depois de uma chuvada? E os passeios onde uma pobre
mulher tem que andar aos ziguezagues por causa dos carros estacionados e dos
caixotes do lixo, esses são seguros?
Valha-nos
Santo Antoninho!
Fui
ontem ao mercadinho comprar umas comprinhas para cozinhar em casa para mim. Em
aparte, soubessem as boas almas que eu cozinhava em casa, e não faltaria o
falatório do perigo das explosões com caminho seguro para o hospital ou para a
morgue! E antes não tivesse ido!
Então,
lá no mercado, soube duas coisas muito más, e elas foram que a minha amiga do
quiosque fora desalojada para fazerem naquele sítio uma garagem…sendo a outra
coisa má era, é, que constava na rua que havia uma velhota maluca que pendurava
cuecas encarnadas no estendal, que ia ser denunciada às autoridades para a
levarem para um manicómio. Veja-se o que uma brincadeira rebelde pode fazer a
uma pessoa…Maluca na boca do povo…
Serei
maluca? Não, não sou. Mas o povo vai ver-me assim. Quem ajudei, com quem
troquei coisas boas e más, porque também as há e as fazemos, não somos anjos
nem diabos, quem se chegou a mim na mira do que podia ter para lhes dar, hoje,
dos que sobram, vão apontar-me a dedo como maluca e maluca perigosa de papel
passado pelos que podem.
Tenho
meios de viver mais uns anos se não aumentarem muito o preço dos remédios que
vou precisando, apesar de poucos porque graças ao alto, tenho boa saúde para a
minha idade, como e bebo uma pinguita rara e pouca, apenas para a circulação do
sangue, morreu a minha amiga dos jornais que me deixou um pouco mais sozinha….
E isso é razão para ser escolhida a dedo feio na rua?
A
minha vida ficou muito diferente depois das cuecas encarnadas, se foi isso que
me fez mal. Eu ri dessa partida que preguei a quem me queria transformar em
montra para turista ver quando ia comer sardinhas assadas a um preço de horror.
Disso
eu realmente ri com gosto! Ainda me resta muito humor nestes setenta anos! E
lembrei-me que também me resta um 3º andar com seis assoalhadas de renda
económica que me cobiçam na minha cidade de sempre.
Então
será isso!
É
triste. Não sei se hei-de rir, chorar ou matar-me…
Vou
decidir isso amanhã.
Gostei muito deste conto, sinceramente, o escritor tem futuro :-D
ResponderEliminarChgou quarta feira e com ela mais um conto do António,não falha este senhor.
ResponderEliminarUm conto bonito,gostei muito deste conto!
Gosto desta pureza e transparencia nas palavras e a sua relação da linguagem com as coisas, em conjunto com a luminosidade do mundo em que vivemos!
ResponderEliminarÉ para continuar, já estou esperando mais um.
Boa semana.
Descobri este blog por mero "acidente"...
ResponderEliminarComeço, por isto, a acreditar que o Divino existe. Escolhi aleatoriamente e "esbarrei" com a velhinha dos tapetes de Arraiolos, made in Xangai e pronto!... Agora tenho que comprometer-me com este Blog, pois não concebo a ideia de não o ler de fio a pavio.
Obrigado, António, pelo prazer que começou já a proporcionar-me. Prometo que volto e desejo, sinceramente, muito sucesso!!
Um abraço.
Carlos Fragata
Gosto muito deste conto!
ResponderEliminarEu sempre disse que o autor tinha futuro e sinto-me um bocado "padrinho" deste blog ;-)