Angelina já ultrapassara os setenta anos. Um pouco
mais do que o seu Vitor que mesmo assim não estava muito longe, com sessenta e
oito anos ainda, vá lá, rijamente feitos.
A mobilidade de ambos já não era muita, mas por
felicidade ainda tinham a suficiente para tratarem de si próprios! Mas estavam
sozinhos. Os filhos já eram sombras boas no passado.
Com o cuidado no que comiam, na movimentação mínima a que
se obrigavam, na ternura com que se tratavam um ao outro, residia o bem que
sentiam em viver ainda juntos. Mas tinham ou sentiam uma falta qualquer…algo
que lhes fizesse companhia. Um cão? Talvez…
Mas Angelina, com a prudência que faz as mulheres serem
sábias e não só antigas, temia que um canito, ainda que pequeno pudesse ser
demasiada agitação mesmo assim.
Vitor trouxe para casa o Fofinho. Nem houve discussão!
Ficou com direito a um canto do sofá onde foi mantido sossegadinho sob os olhos
embevecidos dos donos, muito particularmente da dona!
Na imaginação de Angelina, O Fofinho era uma belíssima
companhia, mas coitado, estava sozinho como eles!
Vitor respondeu às penas da sua mulher com a Vivinha.
Não
davam trabalho nenhum, não ladravam, não sujavam, só faziam companhia.
Quando
o Vítor chegava a casa e via o ar contente da sua Angelina, acariciava os novos
companheiros do lar que passaram a ser um entretém para o casal. E porque não?
Numa família já sem filhos presentes, qualquer coisa até bonecos, se simpáticos,
pode ser motivo de conversas, um elemento contra a solidão, uma daquelas coisas
que se inventam para dar alguma consistência ao vazio diário! E inocente, que
diabo, ninguém tinha nada com isso, ora essa!
E
até se arranjaram brincadeiras que os entretinham nos seus dias de melhor
disposição. Angelina, sempre terna como uma mulher que nunca se esquece de que
foi Mãe, ia ao ponto de tapar com
um cobertorzinho o Fofinho e a Vivinha! E o seu Vítor? Esse que fazia com os
dois fofos bichos? Pois punha-os em posições cómicas que a faziam rir e tirava
fotos sem fim em todas as posições! Ela sempre se lembraria de uma fotografia
com o Fofinho de óculos (???!!) e a ler um livro! Doido do homem!
Mas
a alegria que sentiam ao ver as fotos, era por si só gratificante da existência
daquela família um pouco exótica, pode dizer-se. Mas se uma família é um
sentimento de união, ali havia esse cimento!
Vítor
observava como a sua Gina renascia , especialmente com o Fofinho. E a
imaginação não parava de surpreendê-la. Ora era uma vez em que o Fofinho
aparecia sentado ao lado de uma caixa de macios chocolates, ora tinha uma flor
para ela junto das patinhas.
Pede-se
aqui espaço para um parêntesis. Hão-de ter reparado que se fala menos da
Vivinha do que do Fofinho.
Sabe-se
que esta atitude de preferência por um com um certo, mesmo que ligeiro,
detrimento pelo outro, é, infelizmente, demasiado costumeira na nossa sociedade
e nem exclusivamente entre caninos e bonecos. Há pais que insensivelmente dão
mais atenção ao primeiro filho porque é o primeiro e menos ao segundo porque
berra de noite e o mais velho já não o faz. Lamentável.
Por
vezes a atitude dirige-se ao outro cônjuge. Bem sabemos que a vida é pesada,
que os tormentos existenciais alteram as juradas intenções de cada um. Mas o que
acontece à Vivinha, não pode ter semelhança no ser humano, não pode! Acontece
mas não devia acontecer! Os filhos e os idosos esperam legitimamente ser alvos
de igual atenção e carinho.
Perdoe-se
neste casal tão unido, mas a Vivinha era um tanto menos comparsa naquela
“família! Tinha atenções, claro, mas os donos achavam mais graça ao Fofinho.
Angelina até falava mais com ele do que com a outra. Razões? Não se sabe bem… talvez
porque o focinho era mais ao jeito de agradar, talvez se calhar mesmo, a verdade
suba à superfície, por ter sido o primeiro a entrar no círculo familiar, quem
sabe…
Ambos
faziam a companhia de que qualquer idoso – e não só – precisa. Certo é que
estas razões de primazia à chegada não justificam tudo, não podem ser
completamente verdadeiras! Senão como teríamos os velhos patriarcas e
matriarcas familiares, chegantes portanto em primeiro lugar, a serem demasiadas
vezes atirados para “depósitos de velhos”?
Atente-se
nisso e voltemos.
Já
vos contei da foto em que o Vítor pusera o Fofinho sentado numa cadeira com um livro
à frente! Claro que não lia, os cães não lêem, toda a gente sabe! Mas foi de
facto motivo para uma boa gargalhada!
-
Tu não estás bom do juízo, Vítor, então pões o Fofinho a ler?
-
Sim! Porque o não vou levar ao cinema, não achas?
Sabia-se
que a doença andava por lá. Todos sabemos que as doenças andam sempre por lá.
Faz-se é de conta que isso não existe, tenta-se aceitar o facto como um
incómodo, incómodo mesmo, deixa que tudo há-de passar!
A
imaginação, compreensível pela idade e isolamento, posta na vida com as
festinhas ao Fofinho e, vá lá, à Vivinha, a ternura e os sorrisos cúmplices
entre marido e mulher, iam ajudando, como dissemos, a aveludar o caminho.
Mas
o fim é inexorável.
Quando
aconteceu, os parentes próximos resolveram que precisavam do espaço deixado,
que os velhos eram uns tolos com aquela lamechice do Fofinho e da Vivinha e
facilmente se resolveram.
Sem
pena, fizeram o que acharam que era um bom destino para aqueles cães de peluche
e atiraram-nos ao lixo.
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