quinta-feira, 17 de outubro de 2013

POSSO?


                                            POSSO?

- Posso?
- Depende.
- Depende do quê?
- Daquilo que a senhora pretenda.
- Ocupação útil.
- Para si?
- Vê mais alguém aqui ao meu lado?
- Podia ser para um neto seu, uma sobrinha acabada de sair da Universidade, enfim, alguém jovem...
- Podia, nisso tem razão, desculpe o começo de conversa.
- Ora essa, minha senhora.
- Mas é mesmo para mim. As respostas habituais deram vinagre à minha forma de falar.
- Entendo...
- Entende?
- Bom, faço por isso, olho para si e vejo que se lhe deve respeito!
- E ocupação útil, não?
- Hesito na resposta...
- Hesita porque tem uma ocupação que me pode ser útil e não ma quer dar, ou há outras razões?
- Hesito porque temos um lugar em aberto, mas não estou certo de que possa ser para si...
- Que fazem nesse lugar aberto? O que soube era de um posto de atendimento telefónico a clientes. É esse?
- Efectivamente...mas...que idade tem a senhora, se me permite a pergunta?
- Claro que permito e atá aprovo a pergunta: 72 anos.
- Não diria tantos, a seu aspeto e a sua voz são para menos idade.
- A minha voz tem quantos anos na sua interpretação?
- É difícil, tem uma voz linda, modulada, até de certo modo, jovem...
- Percebe-se bem o que digo? Tenho um curso de canto e dicção.
- Verdade?
- Fiz teatro, sei falar com as pessoas, e em três línguas corretamente.
- Vejo e oiço que sim, mas...
- O que é esse "mas"?
- O ordenado...o trabalho é por turnos...
- Já não tenho filhos nem marido à espera, os turnos da noite não me incomodam, durmo pouco, apenas o indispensável. E o teatro habituou-me a desalinhos de horas.
- ...o ordenado é pequeno, pode ter que subir escadas...
- Para falar mais alto? Ou o prédio não tem elevador? O serviço não é ao telefone?
- Vejo que argumentação não é uma falta sua!
- Então as escadas não contam...E já lhe perguntei qual é o ordenado?
- Não...nem lho disse, mas é coisa de nada, deve ser pouco para as suas necessidades...
- Seja qual for, se dentro da legalidade, não é pouco para mim. Pedi-lhe ocupação, não ordenados. Acha boas  as minhas credenciais?
- Não as posso negar, mas setenta e dois anos...
- Acha que os clientes da sua empresa se souberem a minha idade deixam de lhe comprar os serviços? Tenciona pôr um cartaz à porta a anunciar que tem uma idosa a atendê-los?
- A sua memória...não fraqueja? É sempre uma possibilidade...
- De si sou capaz de me vir a esquecer, talvez, mas nunca me esqueço de cumprimentar bem as pessoas e...o seu serviço tem um formulário com as respostas, não tem?
- Tem...mas...lamento não a posso...
- Não me pode admitir, é isso?
- ...É.
- Um primeiro e último favor:
- Diga.
- Telefone à sua avó e diga-lhe que ganhou a aposta!
- Aposta?
- Sim, apostou comigo que o senhor era um cretino que não daria emprego a uma pessoa competente que não usasse mini-saia ou calções para atender um telefone.

António Nunes de Almeida

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